Agora é lei: formar leitores é papel da escola

Mais do que incutir nos alunos o hábito da leitura, é preciso ensiná-los a fazer disso uma ferramenta para se desenvolver e compreender o mundo. Especialistas destacam a figura do professor como exemplo e mediador nesse processo

imagem: Depositphotos

Mais de 25% dos leitores de livros de literatura revelam que a última indicação de obra partiu de um professor ou professora. Quase o mesmo tanto apontam um amigo como quem recomendou o título mais recente. Os dados são da edição mais recente da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, promovida em 2020 pelo Instituto Pró-Livro, e confirmam o papel do educador na formação de leitores.

Entre os demais livros os índices são parecidos – a divisão se dá para detalhar o perfil de leitores, mas a leitura precisa ser compreendida como meio de acesso a todo tipo de conhecimento. O hábito de ler dá autonomia para que o aluno construa o próprio caminho do conhecimento, com capacidade de reflexão.

O papel da educação básica na formação de leitores está consolidado desde julho deste ano, quando entrou em vigor a Lei Nº 14.407, que altera a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996. O artigo 22, que fala da educação como indispensável para o exercício da cidadania, recebeu um parágrafo único definindo que são “objetivos precípuos da educação básica a alfabetização plena e a formação de leitores” como requisitos essenciais para o alcance dessa cidadania.

“Que bom que agora tem uma lei. Temos que tornar efetiva essa lei. Já tivemos políticas e leis fantásticas, mas eu acho que o fundamental é criar as condições para que isso de fato se aplique. O que adianta eu dizer que isso tem de ser cumprido, se tenho bibliotecas fechadas ou não tenho biblioteca na escola?”, questiona a coordenadora da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, Zoara Failla.

A especialista chama atenção para o fato de que 60% das escolas do país não contam com biblioteca ou sala de leitura – uma realidade que aparece inclusive em instituições privadas. “É fundamental ter lei, projetos, planos, mas a gente precisa ter vontade política para tornar isso efetivo. Orçamento, investimento, ações, gestão para que se torne realidade”, sustenta.

Para a diretora do Instituto Interdisciplinar de Leitura e coordenadora da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio, Gilda Carvalho, é preciso saber o que os legisladores entendem como formação de leitores. “Não é simplesmente ler um monte de coisa, mas é um leitor crítico? O professor que forma leitores tem formação para isso? Ele é um leitor? Que tipo de acervo esse professor vai trabalhar? Há livros que não necessariamente ampliam sua visão de mundo”, adverte.

Este contexto precisa do protagonismo do professor que se coloca como agente promotor da leitura. Para isso, ele também precisa cultivar o hábito de estar entre os livros. 

“A escola precisa ter professores que amem a literatura e sejam capazes de estimular o aluno a gostar de ler. Aquele que é simplesmente um passador de conteúdos, que manda ler o livro para fazer uma prova ou responder aquilo que ele acha que o autor pensou quando escreveu, não vai estar mobilizando nunca”, alerta Gilda Carvalho.

No entanto, ela percebe que as escolas não estão alheias ao assunto. O esforço para contar com espaços dedicados à atividade e o reconhecimento da importância da leitura mostram uma mobilização. “Quando a gente diz que leitura é importante, não há quem negue. É uma premissa positiva para todo mundo”, observa. A partir desse entendimento, cada instituição busca seus meios para mobilizar os leitores (alunos e professores). São rodas de leitura, saraus, troca de livros, seminários. 

Com experiência na formação de leitores adultos, Gilda Carvalho conta que os alunos são quase unânimes ao afirmar que deixaram de ler na adolescência, quando o professor perguntava o que o autor queria dizer e eles não sabiam responder. “Esse ‘ler para fazer prova’ é algo que não dá certo. Tem que ser sobre o que achou, o encontro daquele livro com seu repertório de vida, de outras leituras, de gosto pessoal”, sugere Gilda.

Dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil confirmam essa percepção. O maior percentual de aumento de leitores foi verificado entre os cinco e os 10 anos. A curva de crescimento desacelera e entra em queda a partir dos 14 anos. 

Embora nunca seja tarde para começar, Zoara acredita que todo hábito desenvolvido na infância perdura e se torna um pilar para a vida. A influência da família é fundamental nesse processo. A pesquisa do Instituto Pró-Livro identifica muito mais leitores que vieram de ambientes formados por outros leitores – seja pela aquisição de obras, seja pela troca de informações e impressões sobre elas.  Mas, no momento em que o número de famílias leitores não chegam a 30% no Brasil, é preciso que a escola preencha essa lacuna. 

O papel do educador

Em meio a tantas opções de assuntos e até mesmo formatos e mídias, cabe ao professor exercer um papel de mediação. Além, obviamente, de dar o exemplo na condição de leitor. É preciso criar momentos e espaços que estimulem o compartilhamento de experiências, tornando a leitura um exercício de troca, socialização e, ao mesmo tempo, desenvolvimento individual.

“A gente verifica na pesquisa, quando pergunta para o professor o que ele lê, que é um repertório que dificilmente ajude em atividades que sejam interessantes, cativantes para formar a garotada que está toda voltada para o mundo digital, games, redes sociais. Hoje esse mediador tem um desafio muito maior”, alerta Zoara Failla. 

A qualificação constante desse profissional é outra lacuna que pode atrapalhar o processo de formação de leitores. Segundo Zoara, muitas escolas privadas até contam com biblioteca e espaço para leitura, mas não dispõem de uma pessoa capacitada para o processo de mediação. A falta dessa figura inviabiliza a preservação e a atualização do acervo, a orientação aos alunos e a criação de projetos que integrem toda a comunidade escolar.

“A formação do professor, em geral, não contempla as práticas leitoras. Você trabalha a literatura, mas no sentido da história da literatura, escolas clássicas, contemporâneas. Já a didática, a prática de como despertar o interesse pela leitura, muitas das faculdades de letras e pedagogia não têm um espaço para desenvolver”, analisa Zoara.

O foco na troca de experiências, que funciona tão bem nas redes sociais e também entre os alunos, pode ser um trunfo para estimular também os professores. Momentos de compartilhamento entre os colegas pode suscitar não apenas o gosto pela leitura, mas também a criação de projetos multidisciplinares.

Intersecção com outras disciplinas

A leitura é tradicionalmente ligada às disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura, mas deve ser compreendida além disso. Gilda Carvalho conta que o trabalho do Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC-Rio parte de um conceito abrangente, com a ideia de leitura do mundo, crítica da realidade e, sobretudo, a possibilidade de trabalhar com múltiplas linguagens e suportes para a leitura.

Neste contexto, a integração entre diferentes disciplinas pode ser tanto um facilitador para que os alunos se interessem pela leitura (especialmente aqueles que preferem outras áreas), quanto uma oportunidade de estender todo o processo de aprendizagem, com as vantagens de projetos assim.

“Pode começar escolhendo livros de literatura e, a partir disso, integrar com geografia, história ou matemática”, sugere Zoara. “Essa promoção da leitura impacta não só em português. Está formando um leitor, um pesquisador autônomo. Além da literatura, ele tem uma capacidade de aprendizagem muito superior”, afirma, lembrando outra pesquisa do instituto que apontou vantagem de um ano e meio na aprendizagem dos alunos que contam com bibliotecas escolares em relação aos demais.

Dispositivos eletrônicos podem ser aliados

Fiéis companheiras dos adolescentes, as telas podem jogar a favor dos projetos implementados nas escolas. Em vez de lutar contra elas, o jeito é trazê-las para o contexto, por meio de leituras diferenciadas que estimulem o gosto pelo hábito para, aí sim, chegar aos livros. Isso não é inédito. Projetos com histórias em quadrinhos e outros tipos de apresentação já mostraram potencial para cativar leitores.

E para começar não precisa de ideias muito complexas. Aliás, pelo contrário: o ideal é partir de atividades que todos consigam implementar e aplicar, como a criação de grupos de discussão nas redes sociais ou usar games que estimulem o avanço na leitura. 

Aqui volta a aparecer a figura do educador enquanto mediador, o que leva Gilda Carvalho a um alerta: o professor precisa ter tempo para pesquisar, se formar e atualizar. “Se ele fica preso só dando aula, planejando, não consegue. Por mais que a gente queira dizer que só tem coisa ruim na internet, tem muita coisa boa”, defende.

Um fenômeno recente que comprova essa ideia é o BookTok, como os adolescentes chamam os conteúdos sobre literatura no TikTok – cuja aplicação no ensino não é inédita. Graças principalmente a essa rede, o número de livros vendidos nos Estados Unidos cresceu quase 10% em 2021, em relação ao ano anterior. 

Por aqui, as vendas aumentaram quase 30%, movimento também associado em parte à tendência entre os jovens, que buscam sinopses e comentários nos vídeos de até 60 segundos. As editoras criaram até selos que informam, na capa ou na embalagem, títulos que são populares na rede social.

Ao leitor, o protagonismo

Para evidenciar a importância da leitura, nada melhor do que dar a mesma relevância a quem lê. Foi assim que o Colégio Murialdo Porto Alegre reforçou entre os alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental que o hábito desenvolve diversas competências. O Banquinho do Leitor Famoso foi lançado em 2016 como parte de um projeto de leitura que a escola já vinha desenvolvendo.  

“A gente tinha noção de que eles tinham muita coisa para contar, queriam falar. Era feita a contação de histórias com os professores, mas faltava a vez do aluno falar, para eles serem os protagonistas. Então pensamos em dar mais voz a eles”, lembra a bibliotecária Silvana da Silva.

A atividade funciona como um talk show e ocorre no mínimo uma vez por mês. Os alunos se candidatam a um sorteio para saber quem será o leitor famoso da vez. O vencedor ocupa o banquinho e é entrevistado sobre um dos livros que leu nas semanas anteriores – já que são estimulados a lerem uma obra por semana. Tudo isso diante de uma plateia atenta de colegas-leitores, que também podem fazer perguntas depois que o professor encerra seus questionamentos.

Como os alunos são instruídos sobre a confecção de livros, as perguntas partem dos aspectos técnicos, como editora, número de páginas, se conta com ilustração, quem é o autor, o ilustrador etc. Depois, questões como quem são as personagens, qual mais gostou, onde a história acontece, se é durante o dia ou a noite, se personagens são animais, pessoas e assim por diante.

Por fim, os alunos contam o que mais gostaram e se indicam aquele livro para os colegas da plateia, que então podem se candidatar a levar aquele livro para casa – o que geralmente acaba em uma lista de espera.

“Percebemos também a questão da inclusão social. Um caso foi bem marcante porque um aluno que é autista e nunca falava nada se candidatou para ser o leitor famoso. Quando os colegas perceberam, nenhum outro se inscreveu para que ele fosse o escolhido. Ele não parou de falar um minuto”, emociona-se Silvana.

Para que tudo funcione, a equipe da escola apresenta o projeto no começo de cada ano letivo, mobilizando todos os professores. “Eles sempre participam, são muito solícitos, fazem perguntas para os alunos durante a atividade. Essa parceria é fundamental. Todo mundo quer uma coisa só, que é a formação da gurizada”, conclui a bibliotecária da escola.

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