Aprovado em Porto Alegre, homeschooling é criticado por educadores

Segundo especialistas, o ambiente escolar é fundamental para o desenvolvimento social de crianças e jovens

por: Tatiana Py Dutra | tatianapydutra@padrinhoconteudo.com
imagem: Depositphotos

Ainda que cercado de polêmicas, o PL 2401/2019, que regulamenta o homeschooling no Brasil, está na pauta preferencial do Congresso Nacional, pronto para ser votado. O texto substitutivo apresentado pela relatora, a deputada federal Luísa Canziani (PTB-PR), estabelece as regras que pais e responsáveis teriam de seguir caso decidissem educar os filhos em casa. 

A matéria carece de aprovação para passar a valer no território nacional. Porém, a capital gaúcha antecipou-se na questão. A Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou, em dezembro de 2021, um projeto de lei de autoria dos vereadores Fernanda Barth (PRTB) e Hamilton Sossmeier (PTB) que institui diretrizes para a educação domiciliar na cidade. Houve quem apostasse que o projeto seria vetado pelo prefeito Sebastião Melo (MDB), mas ele não se manifestou no prazo legal de 15 dias. Resultado: no último dia 17 de março, o presidente da Câmara, Idenir Cecchim (MDB), promulgou a lei.

Conforme o Supremo Tribunal Federal (STF), o homeschooling necessita de uma legislação federal para regulamentá-la. Mas, na prática, se a Justiça gaúcha não receber (e acolher) ação que conteste a lei aprovada em Porto Alegre, ela passará a vigorar. 

O Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa) propôs ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ação direta de inconstitucionalidade no dia 21 de março. A ação acusa a lei municipal de violar os dispositivos da Constituição Estadual e Federal, “não sendo a disciplina legal de tal matéria competência dos Municípios”.

A entidade ainda argumenta que dispositivos na lei “vão de encontro ao direito fundamental à educação”, expressa na Constituição Gaúcha em princípios como “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”.

Co-autora da lei municipal, Fernanda Barth observa que o artigo 205 da Constituição Federal diz que a educação é um dever compartilhado entre a família e o Estado. A parlamentar defende que as famílias tenham a possibilidade de determinar como se dará esse processo sem serem criminalizadas. 

Estima-se que mais de 11 mil de famílias adotem o modelo no Brasil, de forma ilegal. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) define a obrigatoriedade de crianças e jovens entre seis  e 14 anos frequentarem uma instituição de ensino. Os pais que não matriculam os filhos podem ser denunciados e multados para cumprir a determinação.

“O projeto do homeschooling foi criado para garantir segurança jurídica e trazer tranquilidade para uma minoria de famílias que o praticam e têm tido seu direito natural cerceado. O projeto também regulamenta o ensino domiciliar, criando convênio com escolas particulares e poder público, com formas de avaliação e controle de frequência. É uma modalidade de ensino bastante comum e liberada em mais de 60 países”, afirma a vereadora.

Motivações

Apesar de receber apoio de famílias em trânsito constante e comunidades alternativas, por exemplo, a pressão para aprovação da educação domiciliar no Brasil nasceu de um lobby conservador, e tornou-se pauta de costumes defendida pelo governo Jair Bolsonaro. O grupo é crítico dos conteúdos ensinados nas escolas, especialmente os relacionados a temas políticos, históricos e religiosos, além de apontarem falhas como bullying, drogas e violência. 

Já os opositores do modelo alertam para o risco de o homeschooling favorecer episódios de abuso infantil ou da violência doméstica – geralmente identificados pelos professores em sala de aula. Uma proteção nada desprezível, dado que 69,2% das crianças vítimas de abuso sofrem a violência dentro de casa.

Mas a observação mais contundente diz respeito aos prejuízos da falta do ambiente escolar no desenvolvimento de habilidades socioemocionais 

“A criança se educa também ao aprender a respeitar a diversidade, e isso ocorre no processo de socialização que a escola favorece. O conhecimento e a própria  aprendizagem são reforçados pelos colegas. Um ensina para o outro, conta para o outro, compartilha experiências. A escola ensina a conviver e aprender limites”, afirma a professora da Faculdade de Educação  e coordenadora do Núcleo de Estudos Educação e Gestão do Cuidado da UFRGS, Malvina Dorneles.

Para a professora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Carlota Boto, a escola prepara a criança para ingressar no mundo público, fora do seio familiar. Ela dá ferramentas – como códigos da cultura escrita, valores e comportamentais – para a vida sociedade entende ser importante. É um espaço de formação cidadã.

“Ao serem educadas apenas em casa, as crianças não serão suficientemente preparadas para ingressar no mundo público e não serão confrontadas com a diversidade social. A família é mais homogênea, a escola lida necessariamente com a pluralidade. É fundamental frequentar a escola para aprender a reconhecer, a respeitar e, por vezes, a enfrentar aquilo que é diferente”, diz Carlota.

Conforme Malvina Dorneles, sem amplas pesquisas não é possível afirmar que o homeschooling traga prejuízo em relação ao aprendizado infantil ou adolescente. Porém, na escola a estrutura é mais adequada, com professores, diretores coordenadores e um projeto pedagógico servindo de norte aos conteúdos essenciais.

“Há uma grande e equivocada desvalorização dos professores, a ponto de se pensar que qualquer um pode assumir o papel desses profissionais. Mas não basta apenas ter um conteúdo a passar, é preciso capacidade técnica. Isso quem garante é o professor. São conhecimentos teóricos – filosóficos, sociológicos e psicológicos – e habilidades didático-pedagógicas e práticas que só os docentes têm. Um  professor profissional ruim ainda é melhor que um professor leigo”, afirma a pedagoga Jossana Ramos Meira.

O Sinepe-RS já manifestou posição contrária ao homeschooling. Na edição 141 da Educação em Revista, publicada em abril do ano passado, o presidente da entidade, Bruno Eizerik, demonstrou preocupação com a qualidade do ensino que os estudantes receberiam. Ele ainda rebateu críticas feitas por pais a supostos riscos trazidos pela escola. 

“As famílias têm direitos, mas acima de tudo está o direito da criança de se desenvolver. Se tem problema de doutrinação nas escolas, que se discuta e se resolva. E se essa escola tivesse os valores que a família acredita? Há tantas escolas, não precisaria impedir as crianças de frequentarem. A solução para a Educação é investimento nas escolas e professores”, afirma.

Outras tentativas

Porto Alegre não foi a primeira cidade do país a tomar a iniciativa de legislar sobre o homeschooling. Cascavel (PR) e Vitória (ES) regulamentaram o modelo em 2019. O Distrito Federal adotou a medida em 2020, mas ela acabou vetada pela Justiça. O mesmo ocorreu após o governador catarinense Carlos Moisés sancionar a lei aprovada pelo legislativo no ano passado.

No Rio Grande do Sul, o modelo passou na Assembleia Legislativa em junho do ano passado, mas recebeu veto do ex-governador Eduardo Leite, por dúvidas quanto à legalidade da matéria. Segundo a Procuradoria-Geral do Estado (PGE), o STF atribui ao Congresso Nacional a regulamentação da prática.

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