Os impactos da tecnologia no desenvolvimento de crianças e adolescentes
Governo Federal prepara guia para pais e educadores utilizarem dispositivos de forma mais inteligente
A imagem de crianças que ainda usam fraldas mas já sabem passar seus dedinhos pelas telas de um tablet ou de adolescentes em grupo nos pátios das escolas, cada um com seu smartphone, se tornaram quase um símbolo dessa nova geração. Quem nasceu com a internet consolidada como parte do cotidiano parece não conseguir entender um mundo sem telas. Sabemos que as possibilidades de acesso à informação são muitas, mas será que estamos fazendo um bom uso das tecnologias em nossos lares e escolas? Como encontrar um equilíbrio para que o uso de dispositivos não prejudique o aprendizado e o desenvolvimento dos estudantes?
No mês de outubro, o Governo Federal lançou uma consulta pública para ouvir a sociedade sobre estratégias para o uso consciente de telas e dispositivos digitais por crianças e adolescentes. A ideia é criar um guia para pais e educadores usarem como fonte na hora de utilizar a tecnologia com os jovens. Para isso, um grupo de trabalho, composto por especialistas como médicos, pedagogos e psicólogos, foi formado para auxiliar na construção do material, a partir das propostas da comunidade brasileira, que tem até o dia 23 de novembro para dar a sua contribuição com o documento.
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Antes dessa proposta governamental surgir a OPEE Educação, empresa que trabalha com projetos educacionais, lançou os resultados de um estudo realizado com mais de 1,7 mil pessoas – sendo mais da metade educadores –, sobre os impactos da tecnologia no desenvolvimento de crianças e jovens. Os números impressionam: mais de 90% dos professores afirmam que os alunos estão utilizando telas em excesso e sem o acompanhamento de um responsável. A tecnologia facilita muitas coisas do dia a dia mas, segundo o psicoterapeuta e autor da metodologia OPEE, Leo Fraiman, é preciso que haja uma orientação, tal qual a que recebemos quando aprendemos a andar pelas ruas de uma cidade.
“Nenhum pai vai deixar uma criança de 5 anos andando sozinha na rua. Se pensarmos, as vias das redes sociais também são vias públicas. É preciso evitar falar com pessoas que não temos vínculo e olhar para os dois lados antes de postar algo. Tomar cuidados não significa controlar, vigiar ou punir. Muito pelo contrário: é ensinar, tanto crianças como adolescentes, quando usar, para que usar e o quanto usar das novas tecnologias”, orienta.
Fraiman destaca que jovens e crianças são hoje alvo fácil de pedofilia, pornografia e crimes cibernéticos, até porque seus cérebros não estão prontos para lidar com as consequências de um uso intensivo de tecnologia. “Além das imagens, o uso da tecnologia traz prejuízos para o sono, aumento do sedentarismo, ansiedade e depressão, que cresceram incrivelmente depois que os celulares se tornaram onipresentes na nossa vida. Isso leva a prejuízos na vida escolar. Com o sono prejudicado e tantas distrações, crianças e adolescentes têm lido cada vez menos em muitas partes do mundo”, lembra o psicoterapeuta, autor de mais de 20 livros que abordam a educação.
Rigor e disciplina são pontos importantes nesse momento, especialmente para garantir rendimentos escolares e sociais melhores e fazer da tecnologia uma aliada e não uma vilã. Fraiman acredita que tudo começa com combinados mais claros sobre o uso da tecnologia entre crianças e adolescentes e a criação de momentos sem telas, especialmente dentro dos quartos, durante as refeições e antes de dormir. “Também deixo aqui a sugestão de que os pais expliquem para os filhos sobre o uso da tecnologia com intenção ou propósito, ambientes em que se pode usar e tempo adequado de tela”, completa.
Um dos integrantes do grupo de trabalho que está organizando a cartilha proposta pelo Governo Federal é o psicólogo Cristiano Nabuco, especialista em dependência tecnológica. Ele é criador de uma unidade pioneira no Brasil, que presta atendimento para pacientes dependentes de tecnologia e também realiza o desenvolvimento de intervenções em psicoterapia. Nabuco percebeu o uso de recursos tecnológicos como uma espécie de vício bem antes da Organização Mundial da Saúde (OMS) classificar o chamado Internet Disease Disorder como doença da área da saúde mental. Doença essa que tem atingido pacientes cada vez mais jovens. Nabuco explica que, em função da longa jornada de trabalho, muitos pais e cuidadores disponibilizam dispositivos tecnológicos como uma espécie de babá eletrônica.
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“Isso vai criando na criança um tipo de dependência. Ela necessita de coisas que emitam sons, se mexam, vibrem. Tudo que não segue essa rotina, começa a ficar desinteressante. Essas crianças começam a não se sentirem satisfeitas se não tiverem uma tela nas mãos”, afirma o psicólogo.
Nabuco, assim como Fraiman, orienta a presença ativa dos cuidadores durante o uso de telas. Mais que supervisionar a criança ou o adolescente, os pais precisam se engajar nas atividades. “Sentar ao lado do filho, criar uma conta para jogar junto com ele, assim como estipular horários para esses usos. Tudo isso pode ser implementado à medida que a gente coloca o tema do uso abusivo da tecnologia no centro da mesa, que tenhamos uma visão crítica sobre isso”, direciona.
E essa visão crítica pode começar a ser exercitada com a participação na consulta pública proposta pelo governo. Nabuco acredita que esse pode ser o pontapé inicial para que a discussão ganhe mais força entre as famílias e também entre os educadores, gerando, a longo prazo, mudanças mais significativas sobre o uso das tecnologias entre os mais jovens.
“Essa proposta governamental é mais um elo da corrente, mas ainda há muito a ser feito. Como, por exemplo, a criação de projetos de lei e a responsabilização das empresas de tecnologia. As mídias sociais não são chamadas para essa conversa. Para você lançar um novo lápis, precisa da aprovação do Inmetro. Mas, a rede social, onde 40% dos usuários são menores de 13 anos, ninguém fala nada. Nós, como sociedade civil, precisamos fazer alguma coisa”, conclui.
Inteligência Artificial em favor da aprendizagem
Mas e quando a tecnologia está dentro da escola, o que fazer? O uso de Inteligência Artificial, como o popular Chat GPT, criado pela empresa OpenAI, onde é possível fazer perguntas e até criar textos inteiros com apenas algumas orientações, também ganhou as salas de aula. Num mundo de possibilidades para se acessar informações, ferramentas como essa parecem querer tomar o lugar dos professores e até mesmo da interação entre os estudantes. Para Leo Fraiman, acreditar que a IA irá substituir um professor é uma tragédia educacional.
“Muitas vezes, por afãs marqueteiros e pela falta de pesquisas sérias sobre o assunto, temos lidado com a presença intensa de tecnologias com base em palpites, opiniões ou mesmo interesse de empresas que querem vender um software e equipamentos que, na prática, não impactam mais a educação do que o velho e bom papel, escrita e leitura em livros”, avalia.
Utilizar a IA para vias de pesquisa e fazer com que o aluno escreva o que aprendeu de forma crítica pode ser uma alternativa para estimular o questionamento sobre a enxurrada de informações recebidas diariamente por meio da internet e outras ferramentas tecnológicas. Porém, fazer dessa prática uma rotina pode ocasionar danos não apenas no aprendizado, mas na própria maneira do aluno se portar diante do mundo, incentivando o desenvolvimento da superficialidade, que coloca em risco, inclusive, os direitos humanos, a democracia e a convivência pacífica entre pessoas. “Com uma vida cada vez mais rasa, as pessoas se tornam mais manipuláveis”, alerta Fraiman.
Mas há quem acredite, e trabalhe, para que a tecnologia traga bons ventos para a educação. A Enter Tech Edu, empresa focada na formação de jovens para carreiras ligada à tecnologia e à programação, busca orientar para um equilíbrio no uso de ferramentas tecnológicas dentro de sala de aula e acredita que elas podem ser um recurso importante para tornar a aprendizagem mais dinâmica e eficaz. Para o head de Educação da Enter Tech Edu, Amilton Martins, a presença da tecnologia traz benefícios para o ambiente escolar. “Utilizar jogos, simuladores e plataformas digitais geram engajamento dos jovens na educação formal. A fluência digital prepara professores e estudantes para uma nova cultura, onde a sociedade é digital e onde surgem novas carreiras profissionais. Isso faz com que os alunos tenham uma visão de futuro já na escola”, informa.
Os novos tempos modificaram a forma de ensinar e aprender, mas ainda cabe aos professores a tarefa de atuarem como mediadores das tecnologias entre os jovens estudantes. Martins ressalta a importância da intencionalidade pedagógica, ou seja, o uso de materiais tecnológicos em sala de aula deve ter um propósito e não funcionar apenas de uma forma lúdica. “É preciso ter uma funcionalidade, que o aluno aprenda alguma coisa nova no final do dia. Utilizada com uma finalidade clara, a tecnologia é uma ferramenta muito poderosa. Na vida, ela deve ser usada com muito equilíbrio. Brincar com massinha, subir em árvores e ter atividades ‘analógicas’ é parte da educação integral, para a mente, para o corpo e para a espiritualidade, tornando os estudantes um cidadão do mundo e também do mundo digital”, finaliza.
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