A quebra de paradigma que pode virar a página do Ensino Técnico no Brasil

Conscientização sobre as vantagens de um curso ágil, acessível e profissionalizante pode ser o que falta para o segmento crescer ainda mais e se consolidar como opção para os estudantes

por: Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

De cada dez estudantes brasileiros entre 15 e 24 anos, um deles frequenta cursos profissionalizantes. Não é pouco, mas ainda fica bem abaixo da média dos países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que varia de 35% entre os estudantes de 15 a 19 anos a 65% entre aqueles com 20 a 24 anos. As informações são da Agência Brasil, com base em dados do relatório Education at a Glance 2023, publicado pela OCDE.

Para que esse número aumente em terras brasileiras, as instituições precisam intensificar o processo de desmistificação sobre os cursos técnicos. “Nossa maior dificuldade, por incrível que pareça, é o desconhecimento. Não é porque as pessoas não conhecem e aí têm preconceito: as pessoas não conhecem a possibilidade. Não sabem o que a formação técnica permite, a empregabilidade dos profissionais técnicos, então não optam por esta alternativa, mais por desconhecimento do que por preconceito”, observa o diretor administrativo da Escola Técnica Cristo Redentor, de Porto Alegre, Carlos Milioli.

Com larga experiência no segmento, Milioli relata que, em conversa com lideranças empresariais, surpreende o nível de desconhecimento acerca das possibilidades e das portas que se abrem a partir do ensino técnico. Quando descobrem o quanto esses cursos ajudam no desenvolvimento de carreiras e mudam a vida das pessoas, a surpresa é proporcional àquele desconhecimento.

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Mas para mudar vidas é preciso dialogar com o dia a dia das pessoas. A coordenadora dos cursos técnicos da Sociedade Educacional Três de Maio (Setrem), Ana Cláudia Leite, conta que a instituição trabalha em comunhão com empresas e a realidade da região para entregar soluções que façam sentido para todos. “Temos conseguido fazer com que as pessoas percebam que o curso técnico favorece a inserção no mundo do trabalho”, avalia. 

O gargalo, para instituições como a Setrem, reside no pagamento das mensalidades. Segundo Ana Cláudia, quem tem condições de pagar esse custo acaba optando por uma graduação. “No Brasil, se desenvolveu o conceito de que atinge o sucesso aquele que realiza o ensino superior. Precisamos trabalhar essa mudança de perspectiva. Temos muitas oportunidades, mas devido ao preconceito das famílias, principalmente as que têm condições de bancar uma faculdade, mandar os filhos para estudar em outra região, almejam ensino superior”, relata.

Não se trata de uma dualidade, uma escolha entre ensino técnico ou superior. A saída está justamente em mostrar que esses cursos podem ser complementares ou definidos de acordo com cada etapa da carreira – e da vida – das pessoas. Frequentar o ensino técnico concomitantemente com o Ensino Médio, por exemplo, permite que o estudante saia da escola com uma profissão. Quando sentir necessidade de crescer ou se reposicionar, pode optar pela graduação para isso.

Conquistando alunos

Dialogar com a comunidade é mais uma boa opção. Neste sentido, a Setrem promove cursos para o público em geral que dão uma amostra do que é ensinado nos cursos profissionalizantes. Feito este primeiro contato, as pessoas não apenas frequentam ou levam seus filhos, como também indicam a instituição.

“É um trabalho de formiguinha. A gente não conscientiza, as pessoas é que se conscientizam. Para isso, oportunizamos o conhecimento”, explica Ana Cláudia. Os cursos, gratuitos, são de temas como fotografia (ligado ao técnico em comunicação visual) ou hardware (do técnico em informática). Eles fazem parte de uma estratégia de marketing que reforça a presença e a relevância dos cursos.

Essa provinha vem dando bastante resultado. Aliados a ela estão conteúdos, distribuídos em diversos canais. Depoimentos de estudantes e conversas sobre o mercado de trabalho ocupam redes sociais, podcasts e programas de rádio, por exemplo. Eles contam como são feitas as avaliações, falam da metodologia e atestam sobre a colocação na carreira.

Outro formato que ajuda no fomento aos cursos é a parceria com empresas. O plano de ensino é desenhado com base nas especificidades ditadas por empresários e especialistas, de modo que os estudantes saiam preparados para atender a demandas dessa cadeia.

“Esta não só é uma possibilidade, como já é uma realidade. Há muitas vagas de nível técnico que não são preenchidas por absoluta falta de mão de obra”, lamenta Milioli. Ele conta que muitas escolas, principalmente do interior, definem, em parceria com o mercado empregador local, as competências específicas a serem trabalhadas nos planos de curso. Tudo para tentar preencher essa lacuna.

A adesão, por parte das empresas, também pode melhorar. Ana Cláudia nem sempre vê reciprocidade na intenção de formar um quadro técnico capaz de suprir a carência de profissionais. Quando há vontade de ambos os lados, a coisa acontece – a Setrem tem convênio com diversas empresas. 

“Oferecemos descontos comerciais para empresas que fomentem o estudo, sendo um pré-requisito estar fazendo curso técnico, por exemplo. Mas não existe uma triangulação, é muito mais na perspectiva de ‘estamos precisando desse modelo de profissional’, então organizamos cursos de curta duração, para demanda específica da empresa”, detalha a coordenadora. Pelo menos esse movimento acaba atraindo a atenção dos estudantes que, depois, muitas vezes se matriculam nos cursos técnicos ou de ensino superior.

Desafios

Uma das principais dificuldades na gestão de cursos técnicos está na liberação ou atualização dos cursos. Isso porque a responsabilidade não está bem definida: o ensino técnico é de nível médio, portanto, seria incumbência dos governos estaduais. No entanto, essa tutoria fica dividida com o Ministério da Educação (MEC). 

Fazendo do limão uma limonada, Ana Cláudia vislumbra o lado bom: como a Setrem conta com cursos de nível superior homologados pelo MEC, o processo de autorização ou atualização dos currículos técnicos é mais ágil junto ao ministério. “A secretaria dos cursos técnicos do MEC possibilita que quem tem ensino superior possa oferecer cursos técnicos na mesma área, desde que a graduação tenha pelo menos um conceito 4 na avaliação do ministério”, explica.

Ainda dentro de prerrogativas, leis e permissões, o Novo Ensino Médio também pode ter um papel decisivo para o crescimento do ensino técnico nos próximos anos. Mas, antes, é importante lembrar os tipos de ensino técnico:

O ensino técnico pode ser concomitante (quando o estudante frequenta o Ensino Médio e o profissionalizante ao mesmo tempo, em instituições diferentes); subsequente (quando se matricula no técnico após a conclusão do Médio); ou integrado (quando as duas coisas andam juntas).

A reforma no ensino previa a oferta de um itinerário formativo com foco no ensino profissionalizante, ou seja, o ensino técnico integrado. No entanto, dois fatores atrapalharam o processo. Primeiro, a pandemia retardou a implementação da nova metodologia na grande maioria das instituições. Depois, a troca de governo em nível federal reacendeu o debate sobre alguns pontos e deixou muitas escolas em compasso de espera. 

“A ampliação da oferta de ensino técnico integrado está em stand by para aguardar a aprovação da nova legislação a respeito. Mas já há muitos projetos no mercado. Se esse tipo de formação for do interesse das famílias, é importante buscar opções no mercado. Já há muitos exemplos. A expectativa é que cresça ainda mais”, projeta Milioli.

A oferta é tamanha que o MEC oferece um catálogo reunindo todas essas opções. São mais de 200 cursos homologados, em praticamente todas as áreas do conhecimento e da economia. E o mais importante: funções que dificilmente serão substituídas. Como frisa Milioli, figuras como o técnico em enfermagem, em química ou em segurança do trabalho não perderão relevância tão cedo – se é que um dia isso vai acontecer.

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