Como trabalhar a educação financeira na prática em sala de aula

Tema deve estar previsto no currículo, conforme projeto recentemente aprovado na Assembleia Legislativa; BNCC também prevê a abordagem do assunto em sala de aula

por: Tatiana Py Dutra | Especial
imagem: Depositphotos

Pesquisa divulgada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), no dia 5 de setembro, revelou que oito em cada 10 famílias brasileiras estão endividadas. Dessas, 29,6% estão inadimplentes e 10,8% informaram que não terão condições de pagar as dívidas em atraso. Outro levantamento, feito pelo Serasa, indicou que no universo de endividados do país, quase 13% são da geração Z – ou seja, têm entre 18 e 25 anos. 

Para a professora do Departamento de Ciências Contábeis da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Wendy Carraro, essa é mais uma prova da necessidade de levar a Educação Financeira às escolas, já que a maioria das famílias não estão preparadas para ensinar os mais jovens.  

“A escola é um berço, muitas coisas são aprendidas lá. Educação Financeira não remete apenas a dinheiro, mas a tudo o que envolve recurso, que de certa forma se relaciona ao fluxo financeiro. Se eu estudo em uma escola, eu tenho que entender que alguém pagou por aquela mesa, aquela cadeira, pelos materiais que a escola disponibiliza. Que o processo de chegar o dinheiro vem do imposto, de uma pessoa, de uma empresa que trabalha e repassa para o governo. Todo esse conhecimento a gente pode passar desde cedo, sim, para as crianças”, afirma Wendy, que é coordenadora do projeto Educação Financeira para Todos e para Toda a Vida.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) incluiu a Educação Financeira entre os temas transversais que deverão constar nos currículos de todo o Brasil e, em julho, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei que inclui a temática nas propostas pedagógicas das escolas de Educação Básica gaúchas. Conforme a autora da proposta, deputada Any Ortiz, esse conhecimento específico é tão importante quanto os demais componentes curriculares, preparando crianças e adolescentes para o pensamento empreendedor, o consumo consciente e o mercado de trabalho.

Como trabalhar a multidisciplinaridade?

Embora a BNCC traga a Educação Financeira como um tema multidisciplinar, apenas a Base de Matemática o incorpora explicitamente. O texto, inclusive, sugere um trabalho conjunto com a disciplina de História, “visando ao estudo do dinheiro e sua função na sociedade, da relação entre dinheiro e tempo, dos impostos em sociedades diversas, do consumo em diferentes momentos históricos, incluindo estratégias atuais de marketing”. A Base de História, porém, não menciona a iniciativa. Caberá, então, às escolas construir uma estratégia para que o tema seja trabalhado em quatro das cinco áreas do conhecimento que a constituem: Língua Portuguesa, Arte, Língua Inglesa, Matemática, Geografia e História”.

Wendy Carraro, que também coordena a Olimpíada de Educação Financeira desde 2019, diz que não é tão difícil quanto parece. E ilustra essa certeza mostrando as provas da olimpíada.

“As provas têm o intuito não de competição, mas de desenvolvimento de competências e habilidades. O que são essas competências? É saber o que é cartão de crédito, o que é o  limite, e a criança tendo esse conhecimento, vai compreendendo até o limite para uso de recursos dentro de casa. Ela saberá diferenciar o que é um gasto pessoal e o que é um gasto supérfluo. O que é mais necessário, gastar o dinheiro de casa com alimentação ou com jogo?”, exemplifica.

A Educação Financeira poderia ser usada em uma aula de ciências, por exemplo, usando os animais que ilustram as cédulas de real para tratar de temas relacionados à biologia e ecologia. Na disciplina de Língua Portuguesa, ‘ler e compreender, com autonomia, boletos, faturas e carnês’ é uma das habilidades previstas.

“A Educação Financeira não pode ser uma disciplina só. É uma questão que permeia a sala de aula. Um professor de Matemática pode fazer cálculos dos juros de um financiamento, a professora de Geografia pode convidar os alunos a estimar o preço de uma viagem, para falar de cidades, distância, moedas, taxa de câmbio, qual o orçamento necessário para fazer o passeio. Em Artes e Educação Física, como ter atividades de lazer sem gastar”, exemplifica Wendy.

Primeiros passos 

Ainda que muitas escolas privadas gaúchas já tenham introduzido a temática em sala de aula, parte ainda trabalha em sua implantação, conforme as diretrizes do Ministério da Educação (MEC). O Colégio La Salle Medianeira, de Cerro Largo, por exemplo, atualmente trabalha na atualização das matrizes curriculares para a inserção do tema. Mas se adiantou ao fazer parceria com as cooperativas Sicredi e Cresol para fornecer aos alunos noções sobre economia doméstica, poupança e consumo.

“Pensamos que as crianças precisam, desde pequenas, trabalhar com dinheiro para que não se tornem adultos que não sabem lidar com ele. Não só por questão econômica, mas também pelo endividamento, que é reflexo de pessoas que não sabem gastar. Quando se tornarem adultos será importante, e mesmo hoje, porque sabemos que os alunos levam esse conhecimento para dentro de casa. Eles se tornarão mais responsáveis financeiramente e ainda poderão contribuir com a educação dos pais”, afirma a diretora da escola, Simone Friedrich.

Já o Colégio João Paulo I, de Porto Alegre, inseriu a Educação Financeira como componente curricular para as turmas de 8ª série em 2019, como um projeto piloto. De lá para cá, o projeto se consolidou e foi ampliado também para a 9ª etapa nas duas unidades da escola. E os alunos mais velhos também querem ser contemplados.

“No Ensino Médio, há uma chapa do Grêmio Estudantil pedindo a adição da disciplina no currículo”, conta, orgulhoso, o professor Diego Angelos.

Administrador com especialização em Educação Financeira e mestrando em Educação, Angelos propôs a inserção da disciplina no currículo para a direção. O conteúdo, mais do que conceitos financeiros, provoca os alunos a refletir sobre questões comportamentais que envolvem o dinheiro, bem como questões relacionadas à economia e à sustentabilidade. 

“A partir do próprio cotidiano deles, fazemos essas reflexões. Necessidade e desejo em uma compra, como distinguir o que é barato e o que é caro. Porque é caro? Será que a qualidade é maior? Sobre sustentabilidade, uma temática presente é o ciclo das coisas, da produção ao descarte. Para fabricar uma única calça jeans são necessários 17 mil litros de água. Se você compra cinco mas precisa de uma só, está colaborando para um impacto ambiental”, exemplifica.

Angelos diz que já é possível perceber os efeitos positivos do aprendizado dos jovens alunos.

“Teve o caso de uma aluna que comentou que estava tomando banho de 30 minutos e, depois de falarmos de economia doméstica, ela reviu sua postura tanto na questão ambiental quanto na financeira. Pode parecer simples e banal, mas faz parte da construção da responsabilidade”, conta.

Onde encontrar recursos

A professora Wendy destaca que há grande variedade de recursos disponíveis para professores lidarem com os temas em sala de aula. E de graça. Uma das opções é o site Planos de Aula para Educação Financeira, produzido pela revista Nova Escola e alinhado às diretrizes da BNCC, que tem materiais para uso do 1º ao 9º anos. Na página Educação Financeira na Escola, do governo federal, estão disponíveis materiais didáticos, publicações, além de cursos a distância para crianças, adolescentes e adultos.

Já o perfil do Instagram @edufinanceiraufrgs publica sugestões toda quarta-feira. O link na bio da página ainda oferece opções como o Mural de Dicas da Educação Financeira na Escola. O compilado traz ideias para trabalhar com questões aparentemente espinhosas, como Custos, Despesas, Preço e Lucro, em atividades simples, como fazer um bolo (analisando ingredientes e seus preços), lista de supermercado ou simulando uma sessão de cinema em casa, com compra fictícia de ingressos, pipoca e refrigerante.

“Vamos saber quanto custa cada coisa. Isso cria na criança a consciência de valor real. Teve uma turma de professores que fez uma formação comigo que precisava desenvolver um projeto com uma turma das séries iniciais. Eles pediram para as crianças avisarem em casa que fariam uma análise de valor do que ia nas merendeiras. Então, elas viam o que tinha, bolinho, suco e diziam que valor achavam que aqueles itens custavam. No outro dia, iam ao supermercado e faziam pesquisa dos preços. A criança, quando for de novo ao supermercado, vai querer fazer a pesquisa com a noção de que pode economizar na alimentação”, comenta Wendy.

A professora recomenda que as escolas que estão dando os primeiros passos no ensino de Educação Financeira invistam muito em planejamento.

“As escolas não devem simplesmente pegar temas aleatórias e ir jogando nos alunos. Primeiro é preciso entender o que é Educação Financeira, como implementar em cada disciplina e se apropriar desses conceitos. Minha sugestão é que as escolas façam núcleos pequenos para formular um projeto que possa envolver as crianças e a família e que todos possam aprender juntos”.

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