A combinação entre bullying, telas e falta de diálogo que adoece jovens

Profissionais das áreas de segurança, saúde e educação alertam para sinais ignorados de sofrimento entre crianças e adolescentes expostos à radicalização online

por: Vitória Leitzke | vitoria@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

A presença massiva de crianças e adolescentes nas redes sociais desde muito cedo e a ausência de monitoramento e diálogo vêm formando um terreno fértil para crises emocionais e casos extremos entre esse público. Os presságios são sutis, mas estão ali: desenhados, escritos e, às vezes, silenciados. Por isso, profissionais das áreas de segurança, saúde e educação alertam: é preciso reconhecer os indícios e agir antes que seja tarde.

No Rio Grande do Sul, um projeto do Ministério Público (MPRS) monitora adolescentes radicalizados ou em risco. O órgão atua junto a escolas, famílias e outros setores da sociedade para tentar prevenir casos de violência logo que se percebe alguma alteração no comportamento do indivíduo. Desde 2024, 178 situações foram acompanhadas, e 61 ainda estão no radar.

É um processo lento, em que o adolescente vai dando evidências, mudando a personalidade. Ele muda com a família, no colégio, se fecha em si mesmo”, comenta o procurador de Justiça e coordenador do Núcleo de Prevenção à Violência Extrema e do Projeto Sin@is, Fábio Costa Pereira.

Para orientar a rede de apoio das crianças e dos adolescentes, seja dentro de casa ou da escola, o MPRS lançou uma cartilha para que os adultos entendam o que é bullying e cyberbullying e tenham acesso fácil aos canais de ajuda e orientação, como o Disque 100.

Segundo Pereira, há três elementos comuns que prejudicam a ação: famílias disfuncionais, uso excessivo de telas e bullying. Denominados de “triângulo maldito” pelo procurador, os três assuntos estão sempre em pauta. O último, contudo, ganhou mais destaque recentemente após a estreia da série Adolescência, da Netflix. Nela, o espectador acompanha a história de um menino acusado do assassinato de uma colega, com cada capítulo apresentando o ponto de vista de uma parte envolvida: família, escola, polícia, entre outros.

A produção mostra como, mesmo com as crianças e adolescentes passando boa parte do dia na escola ou em casa, o monitoramento (ou a falta de) das redes sociais falha. Lá, comunicações cifradas acabam servindo para uma manipulação que até pode parecer ingênua, mas não é. Assim, desavenças de convívio entre colegas e bullying ultrapassam as paredes de residências e colégios, ganham vazão na internet e acabam nas ruas.

“Esses elementos têm efeito explosivo, principalmente na vida daqueles jovens que se sentem, por um motivo ou por outro, excluídos das relações sociais”, explica Pereira.

Para a psicóloga Daiane Gava, essas situações disparam gatilhos que encontram uma pessoa ainda não pronta, física e emocionalmente, para lidar com eles. “A raiva traz uma sensação de injustiça, frustração. Só quando eu entendo isso é que consigo criar estratégias saudáveis de canalizar essa raiva para resolver o problema e não sair explodindo”, opina. “Eu ajo com raiva para atacar, mas, na verdade, eu ataco porque estou com alguma dor”, finaliza.

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Em evento ocorrido em maio deste ano, o MPRS abordou essa radicalização derivada do bullying e do cyberbullying e a necessidade de programas de prevenção e de uma legislação que trate do tema no Brasil. Com projetos como o Sin@ais, a ideia é reunir materiais informativos e recursos para que crianças, adolescentes e educadores tenham fácil acesso.

Maturidade emocional em construção

Muitas vezes invisíveis aos adultos, crianças e adolescentes brasileiros enfrentam sozinhos o peso do bullying, da exclusão e da radicalização online. Por isso, a pergunta: será que a sociedade está olhando como deve para as crianças e os jovens?

Segundo a psicóloga Daiane Gava, um estudante passa, em média, 14 mil horas na escola ao longo da vida. Por essa razão, ela enxerga que os educadores têm um papel importante no desenvolvimento das habilidades socioemocionais, isto é, a capacidade de lidar com as próprias emoções, regulá-las e ter empatia.

“A gente precisa ter professores treinados para conseguir dar perceber e gerenciar, em sala de aula, conflitos de uma maneira mais adequada. A gente vê professores atuando muito com estudantes que dão mais trabalho, mas, muitas vezes, o que mais sofre não é aquele que externaliza”, ressalta Daiane.

Pereira destaca que as lições da escola podem ajudar a enxergar um problema. Para ele, os primeiros grandes alertas estão tanto na aula de Artes quanto na de Português, onde tem a produção gráfica e a produção textual. “Mas pode-se agregar isso os tios e tias do pátio e da biblioteca, porque, em regra, esses nossos adolescentes são muito quietinhos e são muito isolados”, conta o procurador.

Para o  advogado, especialista em Direito Educacional e consultor de instituições de ensino Luciano Escobar, contudo, há um problema anterior, que deveria ser corrigido em casa.

“É aquela metáfora que é muito batida, que todo mundo usa. Tu não larga o teu filho no meio da Avenida Paulista para ele ir sozinho para casa, mas tu entrega para ele um celular, um tablet, um notebook”, compara ao analisar que os pais se preocupam em educar os filhos para se comportarem em uma festa de aniversário ou a não andarem sozinhos na rua, mas esquecem de ensinar sobre conteúdos ofensivos ou radicais.

Assim como Escobar, que ressalta a importância da fiscalização frequente dos pais quanto ao conteúdo consumido nas telas, o procurador Fábio Costa Pereira acredita que o assunto precisa ser abordado em casa e na escola de forma lúdica para que os adolescentes entendam os perigos e as ameaças que os cercam no mundo digital. “Mas não existe fórmula pronta para isso”, conclui.

Hiperconectividade e seus impactos

De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil, cerca de 25 milhões de crianças e adolescentes entre nove e 17 anos eram usuários de internet no país em 2023. O levantamento também mostra que quase a totalidade dos usuários de internet de 15 a 17 anos (99%) e de 13 a 14 anos (93%) afirmaram ter um perfil em ao menos uma plataforma digital de rede social.

A proporção foi de 82% para usuários de 11 a 12 anos, e de 68% entre usuários de nove a 10 anos. O WhatsApp era a plataforma mais utilizada (78%) então, seguida pelo Instagram (66% em 2023, frente a 45% em 2018). Logo depois aparecia o TikTok (63%).

Nos Estados Unidos, apesar da hiperconectividade, quase metade dos adolescentes afirma que as redes sociais têm um efeito majoritariamente negativo. Os dados são de um relatório do Pew Research Center publicado no mês passado.

Alfabetização emocional como prevenção

Diante desse cenário, a psicóloga Daiane Gava traz dicas práticas para auxiliar educadores na alfabetização emocional dos estudantes. Confira:

  • Criação de vínculo: quando um estudante se sente seguro, o cérebro vai estar pronto para aprender, diferente de quando se sente inseguro ou ameaçado, pois o cérebro fica em estado de alerta e não aprende. Daiane defende que, principalmente professores, devem criar vínculos afetivos com os estudantes, para auxiliar em questões comportamentais e ter abertura de diálogo.
  • Promoção de diálogo: a psicóloga destaca que a adolescência é o momento em que o ser humano quer ser mais ouvido. Quando eles não têm esse espaço, acabam se fechando ou criando uma carência perigosa, momento em que pessoas mal-intencionadas podem se aproveitar da vulnerabilidade. Daiane sugere a promoção de diálogos no ambiente da sala de aula para a escuta e a troca de ideias.
  • Uso das telas: a psicóloga também destaca que educadores e pais têm de se unir para, em conjunto, fortalecer a rede de educação e proteção da criança e do adolescente, ficando atentos ao que eles fazem no celular e nas redes sociais.

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