Mesmo com dúvidas sobre o ENEM, Novo Ensino Médio segue em implantação

Lideranças e educadores analisam cenário de instabilidade, mas depositam confiança a partir dos resultados já colhidos com a nova formatação e do avanço no debate acerca do tema

por: Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
imagem: AdobeStock

Os debates sobre a implantação do Novo Ensino Médio continuam, mesmo com o período de implantação prestes a entrar no terceiro e último ano – já que o planejamento pedagógico para 2024 está em andamento nas instituições. O último episódio foi a Consulta Pública para a avaliação e reestruturação da Política Nacional do Ensino Médio. Os resultados da consulta foram divulgados pelo MEC no dia 7 de agosto.

A janela para manifestação de todos os envolvidos no processo foi concluída em 6 de julho. A contar desse dia, a Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (Sase), ligada ao Ministério da Educação (MEC), tem até 30 dias para concluir o relatório, que será encaminhado ao ministro da Educação, Camilo Santana.

Segundo o MEC, foram quase quatro meses de intenso diálogo com a comunidade escolar sobre possíveis mudanças no Ensino Médio, em seu modelo em vigor desde 2022. O teor dessa manifestação, enviada por e-mail ao Educação em Pauta, dá o tom da leitura de cenário que lideranças do ensino privado têm feito nos últimos meses: ainda que seja possível, a revogação parece estar fora de cogitação, dando lugar a um processo de aprimoramento do Novo Ensino Médio.

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Revogação está praticamente descartada

Para o presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Bruno Eizerik, já há um entendimento corrente de que não se pode simplesmente revogar a implantação do Novo Ensino Médio. “Este é o primeiro grande avanço. Sempre batemos na tecla de que se trata de uma lei e, como tal, precisa cumprir os ritos legais de tramitação para ser cancelada ou substituída”, frisa. Ele reforça que é importante as escolas ficarem tranquilas e continuarem com a implementação, que termina em 2024.

A coordenadora pedagógica do Ensino Médio da Escola Educar-se, de Santa Cruz do Sul, Geovane Aparecida Puntel, admite que a demora e os poucos avanços deixam a equipe apreensiva. No entanto, também acredita que não haja revogação e concorda que ajustes se fazem necessários.

“Pelo que nós já desenvolvemos e continuamos implementando, a questão das trilhas deveria ser repensada. Já as eletivas, devem ser mantidas porque contemplam várias áreas do conhecimento. O aluno escolhe aquela que mais tem interesse – e se não tem, às vezes acaba experimentando e descobrindo uma aptidão. Temos vários relatos neste sentido”, conta a coordenadora.

O presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS), Oswaldo Dalpiaz, vai na mesma direção. Ele destaca que, de modo geral, a implantação do Novo Ensino Médio está sendo bem feita nas instituições particulares. Desde o início, o sistema privado investiu na infraestrutura, na capacitação de seus professores, contratando mais profissionais, estudando e entendendo a arquitetura que essa nova proposta trazia. 

“Graças a tudo isso, a implantação iniciou em 2022 com certas dúvidas, precauções, mas foi bem implementada e hoje já está colhendo frutos. Sentimos o contentamento nas escolas porque alunos estão mais satisfeitos, professores estão tendo resultados. Não dá para jogar tudo fora. Estamos no primeiro ciclo, tudo que é novo requer adaptações”, defende Dalpiaz.

Atualizações do NEM

Posto que o Novo Ensino Médio não deve ser revogado, os ajustes pelo qual teria de passar neste primeiro ciclo também parecem conhecidos pelas autoridades educacionais. Esmiuçar alguns pontos da nova metodologia e dar um norte para a criação dos Itinerários Formativos, cujas possibilidades ainda estão praticamente ilimitadas, lideram a lista.

Na Educar-se, as Trilhas de Aprendizagem ainda causam dor de cabeça. Pela organização da escola, os estudantes precisam fazer as quatro trilhas, mas preparar cada uma delas demanda muito tempo de planejamento dos professores, já que tudo é trabalhado de forma integrada. “Enquanto isso, há queixa por parte dos estudantes, que gostariam de estar tendo mais Matemática e Português. Cuidamos muito para não ocorrer um esvaziamento nos conceitos do que diz respeito à Formação Geral Básica (FGB)”, explica Puntel. 

Para Dalpiaz, algumas instituições ainda precisam compreender melhor o conceito de áreas de aprofundamento, pois não conseguiram jogar dentro deste item toda a capacidade de realmente aprofundar conteúdos que são da FGB. “Como esta área está dentro dos Itinerários Formativos, percebemos que houve deficiências. Com relação às eletivas, a possibilidade de a escola definir a oferta de acordo com sua proposta ensejou a criação de inúmeras, prejudicando quando o aluno se transfere, por exemplo. Mas, dentro do conjunto, o processo de implantação está muito bom”, ressalta.

Outra melhoria, segundo o presidente do Sinepe/RS, deve vir no quinto itinerário, que versa sobre a formação técnica. Isso porque o curso precisa estar contido na mesma proposta da FGB, mas, por não estar bem definido, causa insegurança nas escolas – se será concomitante, complementar, intercomplementar e assim por diante. 

A possibilidade de parceria entre diferentes instituições também pode ser melhor explicada, pois a ida de estudantes de uma a outra exige um contrato bem desenhado, onde conste o que cabe a cada uma delas. “Como será a incorporação dos conteúdos do quinto itinerário na FGB? Como eles vão conversar? Há necessidade de se estudar bem e fazer uma matriz curricular que contemple e seja compreendida pelas duas escolas”, alerta Dalpiaz. “A maioria não se dá conta que, quando oferece o quinto itinerário, deve atestar a conclusão do Ensino Médio e também entregar um diploma de formação técnica. É maravilhoso para o aluno, que dali para a frente tem condições de ir para a faculdade, mas também de ter um emprego, sustentar sua família”, completa.

Bruno Eizerik levanta outro ponto que merece atenção: a carga-horária. Para ele, o principal ajuste a ser feito é o aumento da FGB e a consequente redução do Itinerário Formativo. O ideal, cogita, seria que o primeiro passasse de 1,8 mil horas para 2,1 mil horas, enquanto o segundo cairia de 1,2 mil horas para 900 horas. 

O ex-presidente do Conselho Nacional de Educação Eduardo Deschamps, professor da Universidade de Blumenau, concorda. “A revogação, de fato, não fazia muito sentido. De maneira geral, se observou que existe convergência em alguns pontos, como a ampliação da carga-horária da FGB, para dar conta da Base Nacional Comum Curricular”, entende.

No entanto, Eizerik pondera que essa é uma definição que consta na lei, portanto, também precisaria cumprir os lentos ritos do Legislativo para uma eventual alteração. “Não sei o quanto com uma legislação que não tenha força de lei vai poder mudar isso. De qualquer forma, os Itinerários Formativos ficariam mantidos, com carga horário menor”, sugere.

O presidente da Fenep credita à inércia do governo anterior algumas das dificuldades encontradas pelas instituições de ensino. “Mesmo que seja competência do Estado, com a autonomia do Ensino Médio, era importante que o MEC tivesse determinado algumas diretrizes. Temos estados com 300 itinerários, não faz sentido. O MEC poderia ter determinado quatro itinerários, de acordo com as áreas do conhecimento, por exemplo, e com essa ordenação geral não teríamos essa confusão hoje”, aponta.

O posicionamento da entidade vai no sentido de que trabalhar com quatro itinerários fica razoável – e as escolas não precisariam oferecer todos eles. “Sempre defendemos a autonomia das nossas escolas em relação ao número de itinerários. É importante diferenciar Porto Alegre, onde há muita oferta e a escola pode, por exemplo, se especializar na área de biológicas para ser reconhecida como preparatória para o curso de Medicina. No interior, por outro lado, uma escola chega a atender um conjunto de cidades, então fica difícil fazer essa segmentação”, explica.

ENEM

A avaliação do Novo Ensino Médio nas próximas edições do ENEM já vinha preocupando os gestores e educadores, mas a demora é tanta que a situação ganha contornos ainda piores. “A maior inquietação, no momento, e até uma frustração, é saber que estamos vivendo um formato de Ensino Médio exigido por lei, mas as provas externas continuam no formato tradicional”, desabafa Geovane Puntel. 

A coordenadora da escola Educar-se define como uma incoerência diante do trabalho feito pelos profissionais. “Como há muita seriedade na nossa entrega, não tem queixa dos pais. Mas é nossa preocupação, estamos fazendo uma coisa e é exigida outra. Quem conclui o Ensino Médio no ano que vem já viveu os Itinerários. No meu ponto de vista, é injusto”, lamenta.

Além da questão da carga-horária, Deschamps acredita que uma maior clareza na organização dos Itinerários Formativos ajudaria não apenas a alinhar a implantação do Novo Ensino Médio, como também poderia servir como ponto de partida para a definição do ENEM. “Com certeza ajudaria, principalmente para que fosse organizada a prova da segunda etapa, a partir de uma matriz”, acredita.

O problema consiste justamente na imprevisão de se avaliar o aprendizado dos Itinerários Formativos – reforçada por diversos fatores apontados acima, como a infinidade de itinerários oferecidos nas redes pública e privada, sem uma padronização ou diretrizes em comum. “A tendência, percebida em conversas com outras lideranças, é que tenhamos em 2024 um ENEM somente com a FGB. E aí, a partir de 2025, a gente comece a ter ENEM também avaliando os itinerários formativos”, acredita Bruno Eizerik.

Apesar dessas incertezas, inerentes a qualquer processo de mudança, Dalpiaz faz questão de reforçar que o ambiente é o melhor possível. Conversando com os diretores, a percepção é de que todos estão contentes, vendo bons resultados e o entusiasmo por parte dos alunos. 

“Há uma preocupação grande, por parte das escolas, em receber orientação do governo, que vem tendo dificuldade de encontrar consenso entre seus técnicos, sobre o próximo ENEM. A partir de 2024 teremos alunos dentro do Novo Ensino Médio e as escolas gostariam de preparar os alunos não só a partir da essência da nova proposta, mas também olhando o exame”, observa. 

Para Deschamps, a dificuldade é mais no âmbito técnico, por ser uma novidade e não estarem claros os parâmetros para criação de Itinerários Formativos. “As redes foram fazendo, até de forma bastante criativa e interessante, mas falta um fio condutor do que é comum”, adverte.

Ele lembra que há algum tempo já se discutia se a avaliação da formação complementar, flexível, como os Itinerários, deveria estar contemplada em um exame central ou ficar a cargo de cada Instituição de Ensino Superior. Ele concorda com Geovane que se o ENEM não medir a parte dos Itinerários, e as instituições também não o fizerem, eles perdem muita força. “É uma parte que motiva os alunos, realmente. Mas acho que com bom senso as pessoas vão achar o ponto”, almeja.

O MEC explica que, concluída a consulta pública e estando pronto o relatório, técnicos do Ministério trabalharão na construção de uma proposta de reestruturação do Ensino Médio. “O relatório será um importante subsídio para orientar o MEC na elaboração de uma proposta ampla de política nacional de reestruturação e de melhorias de ampliação e melhoria de qualidade e equidade do Ensino Médio, inclusive quanto à oferta de valorização profissional e apoio aos estudantes em sua permanência e conclusão de curso”, informou, por e-mail, a assessoria de comunicação da pasta.  

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