O que mudou na Educação em 35 anos de ECA
Estatuto da Criança e do Adolescente representou avanço no acesso dos jovens ao ensino, mas ainda há muitos pontos de atenção
Trinta e cinco anos após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a educação brasileira registra avanços expressivos no acesso à escola e na redução do analfabetismo, mas ainda enfrenta entraves como desigualdade social, evasão e formação de professores. Marco legal, o ECA garantiu o direito à educação como prioridade absoluta, mas especialistas apontam que a efetivação plena desse ideal continua sendo um desafio.
O ECA surge dentro do contexto da redemocratização, tendo como símbolo maior a Constituição Federal de 1988. Promulgado em julho de 1990, substituiu o Código de Menores, instituído em 1979, com uma legislação muito mais avançada para a época e que até hoje é considerada robusta. Com ele, passamos a definir, automaticamente, a responsabilidade da sociedade como um todo. Família, poder público, escola e até mesmo qualquer cidadão: todos têm papel fundamental no cumprimento do estatuto, que estabelece os direitos de crianças e adolescentes.
“O ECA tem uma estrutura técnica e jurídica bastante importante, relevante para a defesa e a proteção dos direitos das crianças e adolescentes”, observa o Conselheiro Ouvidor do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), Cezar Miola, que coordena a Comissão de Educação da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon).
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O tema da Educação aparece logo no Artigo 4º, depois de vencidas as definições iniciais que pautam o texto. Ali, consta que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
No quarto capítulo, o assunto é retomado de forma mais específica. Esse trecho versa sobre o direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer, “visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”. Percebe-se que, desde aquele tempo, a preocupação com uma formação integral já aparece de alguma maneira.
É aqui que se institui o acesso à escola pública, garantindo vaga a todas as crianças e adolescentes. Essa medida, ainda que não ataque a questão da qualidade desse ensino, ajudou a combater índices como a frequência escolar. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2017, 4,7% dos cidadãos entre 7 e 14 anos não estavam na escola, ante um índice de 19,6% quando o ECA foi criado. Muito graças a isso, a taxa de analfabetismo caiu drasticamente. No público entre 10 e 18 anos, ela era de 12,5% em 1990 e caiu para 1,4% – uma redução de quase 90%.
O acesso à Educação Infantil também cresceu. Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2024, as matrículas de crianças de 0 a 3 anos em creches subiu de 28% para 40% entre 2013 e 2023. No entanto, cerca de 20% desse público continua fora por questões como falta de vagas ou outras dificuldades, como a atratividade e a qualidade do ensino.
Este é um ponto em que a desigualdade salta aos olhos: na parcela dos 20% mais ricos da população, 56% das crianças estão em uma creche, enquanto na camada dos 20% mais pobres esse índice cai para 29%. Miola lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2022, que a família não tem a obrigatoriedade de matricular a criança em uma creche, mas, sempre que tiver essa vontade, ela deve ser atendida pelo poder público.
A proteção às crianças e adolescentes ganhou ferramentas importantes com o ECA. Miola lembra da criação de conselhos específicos, como o Conselho Tutelar, que implicaram o envolvimento do poder estatal e da sociedade, que participa ativamente da escolha e da constituição dessas representações.
Mas, ainda que goze do reconhecimento público sobre sua importância e os avanços promovidos, o ECA requer atualizações e aplicações que certamente elevariam o patamar da educação brasileira.
“O ponto de vista da qualidade não está previsto. E o que está previsto, mas depende dos governos, é o investimento real em políticas públicas. Não só em educação: às vezes, a pessoa não consegue frequentar porque uma série de condições precisam ser cuidadas para que se garanta o acesso”, defende a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Rio Claro), Débora Cristina Fonseca.
Miola concorda que a permanência é um desafio em razão de situações de abandono e evasão, ainda frequentes, mas saúda a criação de políticas públicas relacionadas a isso. O mesmo acontece em relação à violência escolar: ainda que episódios surjam com alguma frequência, o Brasil dispõe de um conjunto de normas considerado adequado. “Temos o Marco Legal da Primeira Infância, de 2016, que se aproxima muito do ECA. No caso da violência escolar, há uma série de componentes envolvidos”, observa.
O ECA define responsabilidades para que os direitos das crianças e adolescentes sejam atendidos. Segundo o texto, cabe aos dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicar ao Conselho Tutelar os casos de maus-tratos envolvendo seus alunos, reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares, e elevados níveis de repetência.
O que já era um direito fundamental na Constituição, ganha um texto que diz como fazer isso e responsabiliza a família, a sociedade e o estado de maneira igualitária. “Isso significa que impõe para o estado a garantia da vaga na educação, mas não só isso, porque é sobre acesso, permanência e qualidade. A escola tem responsabilidade de acompanhar e informar quando tem algum problema e também de buscar solução. Isso está bem descrito no ECA”, destaca Débora.
Um dos problemas é que isso nem sempre acontece. A advogada Alynne Nayara Ferreira Nunes, do escritório Ferreira Nunes Advocacia em Direito Educacional, comenta que há escolas que desconhecem essa determinação – e outras optam por não comunicar às autoridades. “Isso se percebe mesmo em escolas privadas, quando os pais pagam, mas não levam seus filhos”, alerta. Para isso, ferramentas como o Disque 100 ajudam a população, já que qualquer cidadão pode fazer uma denúncia anônima.
Assunto recorrente quando se fala dos desafios para o desenvolvimento da educação, a qualificação de gestores e educadores também merece atenção quando se fala do que o ECA prevê. Isso porque, como defendem os especialistas ouvidos pelo Educação em Pauta, não basta que estejam matriculados: a criança e o adolescente precisam de uma educação integral.
“A passagem para o Ensino Médio tem sido um gargalo. Muitos adolescentes abandonam, mesmo sendo garantido o acesso, porque não temos uma escola que acolha as diferenças. É uma evasão que coaduna com uma escola que não é interessante e também com a necessidade de trabalho e renda, principalmente na população mais empobrecida”, analisa Débora.
Segundo a educadora, o adolescente quer acesso a bens, e indo para o trabalho é que ele vai conseguir. Já a escola, muitas vezes, não faz sentido na vida dele, não dialoga com sua realidade. “Temos conhecimentos que possibilitaram outro modelo de escola, mas uma formação e um modelo muito fechados no tradicional, que não dialoga com essas necessidades da criança”, acredita.
Nesse contexto, a formação é um dos principais gargalos. Débora credita à profusão de cursos a distância um dos principais entraves. Embora reconheça que a tecnologia pode ajudar em alguns aspectos, a parte didática e de relacionamento com o estudante precisa do contato real.
Os desafios ganham corpo em velocidade exponencial conforme a tecnologia avança nesse ritmo. No entendimento de Alynne, o ECA precisa de uma atualização para acompanhar esse dinamismo da era digital, com especial atenção às redes sociais.
“Precisamos compreender os efeitos. É danoso. Temos legislação que impede o uso, agora, mas eles vão usar em casa. O que tenho percebido é que o bullying continua. O cyberbullying é um escalonamento que acontece nas redes, feito depois da aula. Precisamos de um debate profundo porque as famílias também têm dificuldade com relação ao direito de imagem da criança”, defende a advogada.
Ela observa que muitas escolas publicam fotos dos estudantes, e orienta para que se tome muito cuidado com essa prática. A dica é utilizar imagens que não permitam a identificação de cada criança ou adolescente, seja pela distância do enquadramento ou pelo foco aplicado.
“Enquanto sociedade, precisamos entender esse assunto como uma violação do direito da criança e do adolescente. Isso tem prioridade absoluta, o ECA precisa abordar o tema da rede social”, argumenta. No dia a dia, Alynne conversa com escolas, mas lamenta a falta de dados mais específicos e robustos para adequar a legislação de forma mais efetiva. Segundo ela, a escola precisa ser um canal de escuta para as crianças vítimas de violência.
“Como tudo hoje é na lógica da rede social, tudo é para ganhar like. Quem nem está envolvido começa a falar, trazer projeto de lei, o debate é muito fragmentado. Mesmo as pessoas adultas têm dificuldade de fazer debate complexo. Além da mudança legislativa, precisa ter fiscalização mais intensa”, completa.
Mesmo aos 35 anos e precisando de adequações, o ECA continua apontando caminhos. “Muita gente diz que não é para a realidade brasileira, mas tem que ser, ele diz onde nós temos que chegar para que tenhamos mudança na realidade concreta. Ele é o parâmetro. É uma lei para a realidade que nós queremos. Ainda não chegamos lá”, entende Débora. A educadora continua acreditando na educação como agente que transforma as pessoas – e, estas, transformam o mundo. “Temos que investir muito nos jovens para que, de fato, consigamos transformar a sociedade. Quando a gente faz uma formação integral, forma valores, direitos humanos, para reconhecer o quanto o que afeta o outro também me afeta – e o ECA tem ajudado muito, mas sozinho não faz nada. Todo mundo deveria conhecer, e as crianças deveriam ter acesso para exigir seus direitos”, conclui.
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