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01/11/2023

Convivência e “justiça escolar”

Coordenador da assessoria jurídica do SINEPE/RS, Jorge Muller, traz uma abordagem jurídica sobre as normas de convivência

por Por Jorge Lutz Müller*
Convivência e “justiça escolar”

Questão recorrente no mundo escolar é a regulação da convivência entre os diversos segmentos que nele atuam. Trata-se de matéria de natureza regimental, comumente tratada sob a denominação de Normas de Convivência. Costuma apresentar-se como regulação de culpas e responsabilidades, oriundas de conflitos internos da vida escolar. Regulação, esta, que se propõe a promover um senso comunitário na apreciação dos fatores de equilíbrio, harmonia e bem-estar capazes de vivificar o ambiente escolar 

Qual o entendimento de justiça com que se deve normatizar a matéria? Algumas observações preliminares podem contribuir para o exame do assunto:

Primeira: o conceito de justiça que parece mais adequado ao universo escolar deve contemplar o propósito de obter relacionamentos saudáveis num ambiente que enfatiza a conexão com a comunidade e não a “independência” e autonomia do “consumidor”. Aliás, este é um ponto nodal: embora o serviço educacional tenha sido posto sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, o aluno é bem mais do que um “consumidor”. O CDC regula uma parte da contratação desse serviço, mas não toda ela. O aluno é também um “cidadão em formação”, e a cidadania, sabidamente, não se limita aos parâmetros regulatórios de fornecimento e consumo.

Segunda: justiça, portanto, vai além de “dar a cada um o que é seu”. O “nós” é importante. O coletivo é importante. A escola não é um simples provedor de informações e conhecimentos capitalizáveis para o sucesso material. Há valores a serem cultivados, dentre eles o respeito, a dignidade e o cuidado mútuo.

Terceira: mais do que à punição, a justiça deve visar à pacificação. E a paz supõe um equilíbrio mínimo capaz de sustentá-la prospectivamente, isto é, não basta a paz do momento e sim é preciso alcançar um estado em que ela se torne um padrão efetivo da estrutura escolar. Ela deve se traduzir num estado de bem-estar. E o bem-estar vai muito além da obtenção da eficiência e/ou da eficácia acadêmicas. Trata-se, portanto, de qualificar a convivência, o que, por sua vez, exige, em boa medida, um balanço adequado entre os extremos da rigidez disciplinar e da permissividade descompromissada. A justiça, portanto, se caracteriza, também, por ser uma condição necessária para este balanço.

Quarta: a noção de justiça pode ser trabalhada de forma vertical, como também de forma horizontal. O que as distingue? A primeira é aquela que encara ofensor e vítima como atores distintos, separados, postos numa lógica de confrontação diante de comportamentos predefinidos e catalogáveis dentro de uma “planilha” de “certo” e “errado”, buscando, a partir daí, definir o(s) culpado(s). A segunda (a horizontal) é aquela que amplia a discussão, nela incluindo os demais participantes da “cena conflituosa”, tenham ou não nela atuado diretamente, com vistas a um entendimento maior dos fatores subjacentes a esse conflito. A ajuda importa mais do que a punição baseada em mecanismos individualizantes e excludentes.  Vale dizer: a concepção de justiça a ser valorizada é aquela que foca na teia de relacionamentos que circunscreve a “cena conflituosa” e não prevalentemente nas leis e regras que porventura tenham sido violadas.

Quinta: a noção de justiça a ser adotada deve estar próxima da noção de equidade. Esta última vai além da noção estrita de justiça, na medida em que proporcionaliza a abordagem do litígio em função de outras múltiplas intercorrências e antecedentes (p. ex., dificuldades cognitivas e/ou socioemocionais, diversidade cultural, origem étnica, classe social, bullying, etc.). Em decorrência, os ditos infratores não se tornam apenas objeto de incidência de normas disciplinares abstratas e, como tal, estigmatizados diante da comunidade escolar. Ao contrário, uma apreciação mais equânime poderá enriquecer a própria aprendizagem dos alunos, tanto de agressores como de agredidos, na medida em que todos se vejam como partes de uma rede mais abrangente de relações. Não basta, pois, o simples tratamento formalmente igualitário: é preciso complementá-lo com adequada consideração das diferenças ou peculiaridades que possam ter contribuído para os acontecimentos que estejam sendo verificados e apreciados.

Sexta: para que isso ocorra a contento, convém compartilhar os procedimentos disciplinares com as instâncias escolares apropriadas, até porque esse compartilhamento não só enaltece a dimensão relacional do conflito mas reforça a legitimação da medida que tenha sido adotada. Trata-se, aliás, de uma faceta importante do que se convencionou chamar de Justiça Restaurativa: ao invés de definir o conflito como infringência de normas, ela o dimensiona, antes de tudo, como violação de pessoas e relacionamentos. E o faz tendo por mote o resgate da boa convivência e a reequilibração do ambiente. Não se trata de enfatizar ou priorizar a pergunta “quem infringiu a norma” e sim a pergunta “quem sofreu o dano”. Ou, então, de priorizar a pergunta “quais as necessidades surgidas do dano e quem tem a obrigação de atendê-las” ao invés de indagar “qual é o castigo merecido”.

Sétima: as normas de convivência devem estar alinhadas com a Proposta Pedagógica da escola. Esse alinhamento, por sua vez, passa por uma revisão do critério tradicional, que separava a questão disciplinar das atividades de ensino-aprendizagem. Tinha-se a noção de que a questão disciplinar era algo à parte, contida num receituário de medidas repressivas a serem adotadas em caso de “des-ordem”. A visão contemporânea propõe a integração da disciplina ao processo pedagógico. As normas de convivência não apenas visam a assegurar a “ordem necessária para funcionar” mas também buscam aperfeiçoar as condutas de interação, deixando de ter seu foco na repressão e passando a tê-lo na aprendizagem e na socialização. Resulta daí enaltecido, pois, o seu papel de condição instrumental da aprendizagem e de internalização de valores propícios a uma boa educação.

Tenha-se presente que o Estatuto da Criança e do Adolescente preleciona que as medidas protetivas devem ter caráter pedagógico. Um dos aspectos relevantes deste caráter é a inserção das medidas disciplinares no horizonte da conexão com a comunidade e não do afastamento do(s) infrator(es). O que não impede, contudo, que, em casos extremos, o afastamento seguido de encaminhamento para ambiente mais favorável possa vir a ser recomendável.

Estas mesmas medidas disciplinares não se confundem com as chamadas medidas de proteção (listadas no art. 101 do ECA) e/ou com as medidas socioeducativas (listadas no art. 112 do ECA). As primeiras são aplicáveis às crianças, sendo algumas delas (incisos I a VII do art. 101) de competência de Conselho Tutelar (cf. art. 136, I, do ECA) e as demais de competência da autoridade judiciária.

Vale lembrar que, mesmo na ocorrência de conduta capitulável como ato infracional, a escola pode enquadrá-la, também, como ato de indisciplina passível de medida disciplinar escolar, sem prejuízo, obviamente, de subsequente desdobramento protetivo ou socioeducativo promovido pelo Poder Público.

Para finalizar: estima-se que a escola deva acolher as “diversidades” de conduta, malgrado possam apresentar incongruências ou discrepâncias com a “filosofia” que tenha embasado a sua Proposta Pedagógica. Sabidamente, não cabe à escola tentar “consertar” um aluno que lhe pareça “fora da caixa”; antes o contrário: o desafio, hoje, é ampliar a “caixa”, para que nela caiba o respeito à “repaginação” de alguns temas contemporâneos. A par disso, é preciso, também, cuidar para que o enaltecimento do direito individual não comprometa a densidade do direito coletivo dos demais alunos.

*Coordenador da assessoria jurídica do SINEPE/RS

 

 

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